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Eduardo Souto de Moura: Atlas de parede, imagens do método, junta um conjunto de imagens pertencentes ao universo de referências de Eduardo Souto de Moura, recolhidas nos seus arquivos pessoais e profissionais. No livro são mostrados alguns planos aproximados do escritório e da casa do arquitecto, onde se vêem, dispostos na parede ou em estantes, objectos diversos, fotografias, desenhos, gravuras, recortes de jornal, maquetas, materiais de construção, livros. Essas imagens lembram os armários de curiosidades, ou wunderkammer, fenómeno que se terá iniciado no século XV e onde se guardavam objectos de viagens, pequenas curiosidades arrumadas sem qualquer hierarquia e fora do seu contexto. Nestes armários de curiosidades podemos vislumbrar um antepassado dos museus, da necessidade de mostrar referências de diferentes proveniências num mesmo espaço. Guardam memórias; evocam viagens; reflectem o fascínio pelo desconhecido; condensam num único espaço o mundo inteiro, desvendam espaços outros; relacionam a micro-escala com a macro-escala; permitem uma arqueologia dos objectos simbólicos. Tentativas de domesticação do medo, mas ao mesmo tempo fascínio pelos novos mundos que se começavam a descobrir, os wunderkammer eram também espelhos que reflectiam a singularidade do coleccionador, as suas viagens a lugares únicos, os seus encontros com coisas extraordinárias. Eram uma metáfora do mundo, ali replicado em miniatura. “Se a natureza fala através de metáforas, então, as colecções enciclopédicas, que são a soma de todas as metáforas possíveis, tornam-se, logicamente, na maior metáfora do mundo.”1 Mas as imagens do Atlas de Parede  são também metonímias (a partir de cada uma delas constrói-se todo um universo) encerradas na metáfora do mundo que são as paredes do atelier de Souto de Moura.

Aldo Rossi, na sua Autobiografia Científica reconhece que “a observação das coisas permaneceu, provavelmente, como a minha mais importante educação formal e isto, porque a observação se transforma mais tarde em memória”2. Ao olhar para trás, Rossi cruza a sua própria cultura, a memória das coisas, “que consigo ver dispostas ordenadamente, como num herbário, num catálogo ou num dicionário”3, com a imaginação, entendida aqui como criação. Este processo não é linear, isto é, há um cruzamento entre memória e criação que produz novos significados. “Este catálogo, situado algures entre a imaginação e a memória, não é neutral. Reaparece quase sempre nalguns objectos, constituindo a sua deformação e, em certa medida, a sua evolução.”4 O que observámos no passado reaparece na presença do novo, filtrado pela força da memória das coisas, permitindo um novo olhar, com sentido crítico. É a memória que forma o olhar, permitindo a deformação dos objectos, isto é, quando olhamos para um qualquer objecto, arquitectónico ou não, ele transfigura-se quando cruzado com a recordação daquilo que já vivemos. “É pela premência, pelo inesperado de uma longínqua ou recente memória, que se completa a ideia ou o sentimento da arquitectura”5. Não são apenas as memórias recentes, nem são apenas as memórias espaciais que dão sentido à arquitectura. “Sempre me maravilhou a capacidade da arquitectura de persistentemente gerar e reverberar memórias. A memória questiona a autoridade de uma obra de arquitectura como um objecto autónomo ou como um objecto de importância isolada.”6 A arquitectura apenas faz sentido como objecto cultural, à medida que desvenda não só o passado de quem lá vive mas também de quem a desenha. “A memória revela a construção gradual de uma obra no tempo, mostrando a arquitectura como um instrumento de percepção.”

Eduardo Souto de Moura: Atlas de parede, imagens do método não tem como ambição ser sistemático, muito menos científico, daí que não se perceba do conjunto coligido uma lógica de organização ou apresentação, deixando que a arbitrariedade do significado das imagens seja desvendada pelo espectador. Será, como se sugere num dos textos que completam o livro, uma das infinitas possibilidades de as apresentar; é a que vemos no livro, mas podia ser outra qualquer. Daí que talvez tivesse sido melhor opção, hipótese aliás colocada pelos editores, que as imagens tivessem sido apresentadas soltas, de modo a que qualquer um as organizasse como bem entendesse, colocando-as nas suas próprias paredes, apropriando-se delas para a construção do seu atlas particular. 

Quase todas as imagens confirmam o que já sabíamos: a compulsão do desenho (em blocos, em sacos de enjoo ou toalhas de papel); a influência de Mies e de Miles; o fascínio pela ruína; a conjugação entre modernidade e tradição (muitas vezes clássica); o gosto pelo exercício da ironia (algumas vezes auto-infligida). Para além do eventual fascínio que as imagens podem representar em si mesmas ou da curiosidade que levantam sobre o método de trabalho do arquitecto, fica apenas subentendida a relevância que têm nos projectos de Souto de Moura. Não são propositadamente explicitadas relações directas entre as imagens escolhidas e os projectos construídos e não construídos. Não fica claro que imagens serviram de mote a um determinado projecto, ou, pelo contrário, aquelas que entraram no universo do arquitecto depois da obra construída. Isto é, não se procura uma genealogia que possa estabelecer uma relação causa-efeito entre as imagens e as ideias de arquitectura. Pelo contrário, fica em aberto a possibilidade de ambas coexistirem simultaneamente. 

Para além das referências visuais, o livro compila algumas contribuições escritas que procuram minorar o “preconceito” que se associa às imagens. A abrir o álbum, o texto de Pedro Bandeira clarifica o papel das imagens na contemporaneidade e na cultura arquitectónica em particular, levantando questões em torno do seu valor, da sua relação com a palavra, da sua subjetividade ou legitimidade (verdade ou mentira), arriscando uma classificação em categorias. Por seu lado, Philip Ursprung remete-nos para os “gabinetes de curiosidades”, procurando entender a importância das imagens no método de projecto de Souto de Moura. Diogo Seixas Lopes, discorre sobre o uso da analogia “na cronologia do arquitecto”, elucidando como as referências visuais, literárias, musicais, se convertem em arquitectura. A fechar, um texto de Souto de Moura – “Uma autobiografia pouco científica” – cujo título remete para Aldo Rossi, e no qual o Pritzker de 2011 relembra alguns episódios da sua biografia (e outras tantas memórias) para concluir com uma aparente contradição que confirma a sua imprevisibilidade.

O que é que fica da leitura deste Atlas? A coragem de fazer uma escolha, o que não é de somenos no distópico universo de imagens em que vivemos submergidos. A persistência de uma ideia de arquitectura como fenómeno eminentemente cultural, e não meramente técnico, aberta a todas as contaminações. O entendimento da arquitectura como um exercício de tempos longos, em que o papel da memória, pessoal e colectiva, é primordial. |

 

 

1 Emanuele Tesauro apud Nicholas Shakespeare. Bruce Chatwin. London : Vintage, 2000. ISBN: 0099289970.


2 Aldo Rossi. Autobiografia Científica. Barcelona : Gustavo Gili, 1998. ISBN: 8425217474.


Ibid.


Ibid.


5 Carlos Jimenez. Memory, a City, and the Need for Poetry. 2G. Barcelona : Gustavo Gili. Nº 13.


6 Ibid.


7 Ibid.

 


VER livro 1 #234
VER livro 2 #234
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VER livro 2 #235
VER livro 1 #236
VER livro 2 #236
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VER livro 2 #237
VER livro 3 #237
VER livro 1 #238
VER livro 2 #238
VER livro 3 #238
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VER livro 3 #239
VER livro 1 #240
VER livro 2 #240
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VER livro 3 #241
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